02 agosto 2006

Sob o signo do fogo




Eu quero acreditar que quando Ronaldo nasceu, lá pelas bandas das Alagoas, uma legião de anjos se reuniu, ao redor de uma fogueira, para vaticinar o futuro do menino.
Um primeiro anjo, encarregado de olhar pela educação no mundo, disse: “Vai, Ronaldo, ser professor, vai ajudar teu povo a pensar.” Um outro anjo, daqueles mais estudiosos, que já tinha ouvido falar em Freud, asseverou: “Vai, Ronaldo, estudar psicologia, te dedicar à psicanálise, vai procurar o dentro da tua gente, da gente do teu Nordeste.” Mas outro anjo também entrou na conversa: “Vai, Ronaldo, ser poeta, vai ser escritor, vai ver o que os outros não vêem, vai brincar com as palavras, vai brigar com as palavras, vai falar pelos que não falam, vai escrever pelos que não escrevem.”
Um outro anjo ainda, daqueles mais inventivos, quis fechar a reunião: “Vai, Ronaldo, põe as mãos no fogo, puxa pela memória, e faze tudo isso com criatividade, diferente, fora dos eixos já repetidos, já conhecidos.
Sob o signo do fogo mítico, imaginário, uma legião de amigos se reúne nesta noite, neste espaço bonito, em torno de Ronaldo e de um livro. E relembra essas décadas de vida e comemora o lançamento de Memória do fogo.
Na verdade, Ronaldo vem realizando aquelas profecias, somando-as e multiplicando-as.
Providenciando a sobrevivência difícil de estudante pobre, em Pernambuco, foi redator de propaganda, em agências de publicidade. Buscando dizer muito, com poucos meios, começou a forjar a sua luta com as palavras.
A Paraíba o acolheu, no final da década de 70, como a tantos de nossa geração, como professor. Na cátedra, sempre instigante, passa a transmitir conhecimentos, mas, sobretudo, se dedica a ensinar a pensar, a provocar o espírito crítico, a produzir conhecimento novo. A sala do professor se amplia no divã do psicanalista, para, como um dos seus personagens, “ver o que está dentro das pessoas, ou bem o que sai de seus poros”.
Como um fio condutor dessas atividades e fruto do seu espírito irrequieto e produtivo, o papel, a máquina de escrever e o computador passaram a sofrer nas suas mãos. E o verbo vai se fazendo poesia, conto, crônica. E, agora, ateando de vez fogo na memória, chega ao romance.
Memória do fogo, publicado pela Objetiva, do Rio de Janeiro, é produção de cabeça madura, de escritor polivalente que sabe o que quer fazer. A erudição do professor e do psicanalista/filósofo, que reflete sobre a condição da existência humana, não o impede, pelo contrário, o impele a valorizar as manifestações e os sentidos vários da cultura do povo, atando o culto e o popular, “numa surpreendente teia de relações”, como já observou Rosa Amanda Strausz.
Caboclo Pena, Caipira, Pai do Mato, Comadre Fulozinha, a oração da cabra preta milagrosa, o catimbó, ou mesmo a música “Bodas de Prata”, lembrada na voz de Carlos Galhardo, se tornam ingredientes narrativos, tratados não com um olhar exótico, senão com o respeito pelo povo e suas formas de manifestação cultural.
O livro desrespeita paradigmas tradicionais. Não cede à tentação de uma trama fácil, com princípio, meio e fim. Cada um dos sete capítulos se liga aos outros, mas proclamam a sua autonomia, numa engrenagem narrativa que exige, para o deleite, a atenção do leitor.
Talvez só por obrigação de ofício crítico, podemos falar de personagens em Memória do fogo. O que vemos, lapidadas, sim, no exercício ficcional, são pessoas de verdade, reveladas (revelar é tirar o véu) nos seus sofrimentos, nas suas desesperanças, nas suas crendices, nas suas dúvidas existenciais, nos seus pedaços de vida.
O narrador se ombreia a Cara Preta – e aqui eu cito o texto de Ronaldo – que sofria muito, desde menino, porque não via o lado de fora das pessoas, via o que ninguém via. E o mais das vezes era feio o que via. E era como se a marca da alma do outro fizesse uma marca na sua própria a cara. Mas não sabia dizer o que via.E esse não saber dizer era o que mais o agoniava.
E o narrador/psicanalista empresta o seu olhar e o seu dizer para – volto ao texto – dizer a verdade de dentro das pessoas. Daqueles homens de corpos atarracados que pareciam de homens, pois ninguém ali crescia muito, era difícil distinguir pelo tamanho um homem de um menino. Mas a cara deles era de menino.Cara de quem ainda espera pelo tempo. Os nomes de batismo esquecidos, agora se chamam Cara Preta, Caçarola, Massapé, Meia Luz, Darque.
A bebida – e bebe-se muito – é o gim, a cidra, a cachaça, o conhaque de alcatrão.A festa é o casamento que não houve, pois Zé Maria e Darque são irmãos.
É a miséria humana, simbolizada a todo tempo pelo fogo que reúne a todos numa irmandade que se consome.E é Joana d’Arc, a que morreu queimada, a Darque, que une os fios da narrativa, que acaba integrando – cito o texto – a irmandade de fogo que queimaria para sempre a dor que carregavam na memória.
E na fogueira se reduzem a cinzas.Acaba a vida, acaba a narrativa.Porque não há mais nada a fazer, porque não há mais nada a dizer.
Ah, meus amigos, minhas amigas, amigos e amigas de Ronaldo, eu me esqueci de dizer, no início, que naquela conversa, um anjo mais gente, daqueles que viam o que estava dentro das pessoas, é quem de fato fez o último vaticínio: “Vai, Ronaldo, ser gente na vida.”
Ronaldo, você é professor, você é psicanalista, você é poeta, você é escritor. Mas, Ronaldo, você é tudo isso, e bem, porque você é gente.


Neroaldo Pontes de Azevedo

João Pessoa, 21 de julho de 2006

Zarinha – Centro de Cultura

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