14 setembro 2006

Digitais & analógicas


Ele olhou fixamente para o visor do seu Nokia e comunicou o que lhe ditava a precisão dos dígitos: você está cinco minutos atrasada. Pela fresta do olho livre do sacrifício do rímel ela passou pelos ponteiros do seu minúsculo Seiko e respondeu: só um minutinho, estou quase pronta.

Não é que mentisse. Antes, era fiel a um princípio estrutural das almas femininas. Estar apenas com um olho pintado é análogo a estar quase pronta. Faltava apenas o rímel do outro olho, o batom e o delineador nos lábios, um pouco de rouge nas bochechas, escolher a bolsa e os sapatos. Fora isto, estava quase pronta.

Mulheres são analógicas. Desde novinhas aprendem que homem é tudo igual. E passam o resto da vida a nos tratar a todos analogamente. E nós, ingênuos digitais, achando que cada mulher é única.

E cada mulher é única, mesmo que repita em seus domínios um padrão comum ao seu gênero: o ódio generalizado a qualquer bugiganga que contrarie a sua atávica analogicidade. Mesmo que essa bugiganga tenha custado quase cinco mil reais e consiga armazenar seiscentas fotos em sua maravilhosa memória digital. Não confio nessa coisa, quero as fotos aqui, na minha mão, para mostrar às minhas amigas lá no trabalho. E acumulam pesadelosamente pilhas e pilhas daqueles álbuns incômodos, de folhas de plástico em que as fotos se grudam e se deformam e que têm a faculdade de aparecer nos lugares mais inesperados da casa: na fronha do travesseiro, no armário de mantimentos, na caixa de ferramentas.

Tristes de nós, os digitais, fadados a viver uma por uma cada fração do tempo, a não estabelecer as relações mais óbvias entre as coisas. Por isto não achamos os óculos, mesmo que estejam às nossas ventas, na prateleira do banheiro, onde acabamos de os colocar antes de lavar o rosto. Por isto não lembramos dos aniversários de casamento, do dia em que o primeiro filho perdeu o primeiro dente de leite, da última vez em que a chamamos pelo apelido do tempo de namoro. Para nós, é tudo como se fosse a primeira vez.

Homens são digitais. É isto que nos torna óbvios, previsíveis. A começar pelo principal traço físico que nos caracteriza. Ali está ele, dígito indiscreto, dizendo de cara a que veio (ou a que não veio). Impossível qualquer simulação. Símbolo de si mesmo, análogo a nada. O traço feminino, por sua vez, é a analogia por excelência. Lembra muita coisa: orquídea, monte, boca, túnel, rio subterrâneo, bolsa pequena, asa delta, borboleta, ninho... E olhe que não estou falando de metáforas. Metáfora é a própria mulher. Metáfora de si mesma, perpétuo enigma para nós, pobres metonímicos.

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