25 outubro 2006

O peixe e meu pai




O mergulhador voltou à tona com um peixe na ponta do arpão. O peixe ainda estava vivo e se mexia no fundo do barco. Era verde, brilhante, um Bico de Papagaio, maior que a palma de minha mão. E a minha mão espalmada pousou sobre o peixe para que ele morresse quieto. Estava ferido de morte. Eu o ajudava a morrer. Quem conhece esse peixe, sabe. O Bico de Papagaio é verde, mas vai ficando azul enquanto morre. Então ele foi ficando azul, ali debaixo de minha mão. Parecia que eu fazia uma mágica. Uma mágica macabra, minha mão tendo o poder de mudar a cor do peixe que morria. E ele ficou sob a palma da minha mão, até se tornar, lentamente, todo azul. O contrário de um milagre.
O quarto do hospital era um oceano. Nele navegava a morte com meu pai no bojo. Eu estava em pé, de frente para o leito onde meu pai morria. Morria lentamente e eu não o tocava. Uma palma de mão maior que a minha comandava aquele tempo lento, sem agonia. De ofegante, a respiração ficou calma. Os olhos antes brilhantes se refugiavam agora numa névoa que marcava o limite de dois mundos. Mais uma vez, eu era a testemunha solitária da transformação. Mais uma vez a mágica macabra se operava em minha frente. Outro avesso de milagre acontecia. Mais um peixe mudava de cor.
De Memória curta, 1996.

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