22 janeiro 2007

Ela


Era linda e fugidia. Relampagueava. Surgia nos desvãos da noite e sumia sem que ele pudesse fixar toda a figura. De uma vez, os olhos. De outra, o perfil. Outra mais, o sorriso perolado. Os movimentos rápidos mal deixavam supor os volumes do corpo. A cor dos cabelos não se definia. Um quebra-cabeça de mulher povoava seus sonhos de poeta.
Não parecia com nenhuma de suas muitas namoradas. Nem com sua mãe, nem com suas tias. Nem com sua irmã, nem com suas primas. Nenhuma possui aqueles traços que a noite lhe trazia. Por isso passou a deitar cedo, tomar lexotan para cair mais rápido no sono e esperar por ela. Mas nem toda noite ela aparecia.
Daí que sua vida virou uma roleta. O bem e o mal dos seus dias dependiam da presença ou da ausência daquele espectro que nunca se mostrava por inteiro. Depois, esta mesma indefinição das formas o fez melancólico. Poeta fértil que era, virou monotemático. Experimentador de formas e estilos, tornou-se fabricante de sonetos. Sentia saudades, criava parnasos, clonava Bilac.
E de tanto querer o que não via, já não queria mais a luz do dia. Trancou-se em casa, cerrou as cortinas, tornou-se inquilino das neblinas. E mais rimas faria se não fora, para tão grande dor, tão pouco o estro.
E foi assim, sem rimas, sem versos, ralo de palavras, que ele penou um dia inteiro. A mesa tosca mal suportava a agudez dos cotovelos que sustentavam uma cabeça em desvario. Foi aí que ele sentiu uma presença enchendo a sala. Era ela, enfim, ele sabia, que vinha revelar-se por inteiro. E já não era mais uma presença externa. Sentia que ela entrava em si, vindo para sempre povoar seus sonhos. E o calor daquela alma deixou no seu corpo uma enorme vontade de dormir. Ele dormiu.
Abriu os olhos com a luz do dia para ver escrito no papel que deixara em branco, em letras redondas de mulher: Meu amor, nunca mais vou perturbar teu sono. Adeus, André.

Foto: Nell Dorr

2 comentários:

Anônimo disse...

Sonhar não é apenas provocação de resíduos do dia, além do espraiar-se aos tentos e desejos incontidos. É passear, povoar e ser povoado por uma dimensão pouco conhecida, é encontrar as musas da vida em mil´outras formas. Ruim mesmo é ser um André abandonado, “inquilino da neblina, sem rimas, sem versos, ralo de palavras”, tonto de esperanças a alimentar seus sonhos. Rona, você é um arretado !!!

Only feelings disse...

Lindo e plausível.
O que será de André agora?