07 agosto 2007

Um copo d'água


O corpo do homem sentado em minha frente estava seco. Seus músculos finos colavam nos ossos e eram cobertos por uma pele fosca, quase acinzentada. A alma daquele homem também estava seca.
Sua fala desfilava automaticamente uma série de registros, blocos de traços de memória, comunicados sem qualquer emoção: a casa em que sempre morou, uma velha mansão que já experimentara seus momentos de fausto, agora repartida apenas entre ele e sua mãe. Essa mãe distante, refugiada em seu quarto, que ele apenas entrevia quando passava pela porta do cômodo em penumbra. Aqui e ali uma breve menção a um pai, já morto, homem de prestígio enquanto vivo.
O resto era um amontoado de cenas curtas, flashes de suas errâncias noturnas: sessões coletivas de picos; baladas em boates gays; transas apressadas em banheiros mal-cuidados, despertar em lugares desconhecidos em companhia de estranhos, ou amargamente só e depenado.
O corpo seco do homem sentado em minha frente me dizia que havia muito pouco a fazer. Um copo d’água, pensei. E se eu lhe der um copo d’água? Mas não fiquei certo de que o copo d’água era mais importante do que a minha presença. Tinha que sair da sala para buscar água e tive medo do que ele pudesse sentir com a minha ausência. Não lhe dei água.
Teria sido a última vez. Não voltou mais à minha sala. Semanas depois, soube que tinha desistido da vida. Até hoje ainda penso que um copo d’água o salvaria.
Ilustração obtida em www.tracaja-e.net

Um comentário:

Anônimo disse...

O copo dágua somente adiaria o salto final.

Muito bom, Ronaldo. Você, cada vez melhor.

Beijos.

Dôra