23 março 2008

Derivas


Os judeus celebram a Páscoa em memória da libertação da escravidão no Egito. Os cristãos comemoram a passagem para o novo tempo que a ressurreição do cristo anuncia. Liberdade, renovação. Que sentido fazem estas palavras fora do seu contexto estritamente religioso e litúrgico?
Um olhar mais atento sobre o mundo nos mostrará que a única liberdade visível é a que se anuncia como liberalidade do mercado. E todos sabemos o quanto isto tem acentuado a desigualdade entre os países e aprofundado a distância entre as classes. Quanto à renovação, ela se dá do ponto de vista estrito das mercadorias, o que nos empurra para um processo alucinado de consumo.
A humanidade ainda não conheceu a Páscoa. Somos todos errantes. Vivemos à deriva num deserto ético em que só os sistemas religiosos parecem apontar alguma salvação. E nisto reside a nossa miséria e nossa esperança. Miséria, porque todo o nosso percurso histórico ainda não conseguiu prover a humanidade dos instrumentos tecnológicos e ideológicos necessários a uma convivência de bonança e harmonia. Esperança, porque alguns desses sistemas religiosos apontam para certas saídas éticas que contemplam uma convivência na diversidade.
Judeus ou cristãos, muçulmanos ou budistas, pagãos ou ateus, nenhum de nós conheceu ainda a liberdade ou a renovação. Vivemos todos ainda à espera de uma Páscoa que nos resgate a todos deste êxodo em que ainda não vislumbramos nenhuma terra prometida. E enquanto esperamos a Páscoa, reconheçamo-nos humildemente como seres de incertezas e derivas. Que a humildade seja o nosso único ponto em comum. No mais, cada um que derive a seu modo.
O cuidado maior, enquanto derivamos, é não dar ouvidos aos que apregoam suas crenças como caminhos exclusivos para a salvação. Todos temos o direito de escolher se e como queremos ser salvos.
Ilustração :"Le Radeau de la Méduse", de Théodore Géricault (1791-1824).

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