25 outubro 2008

Desabrigo


Estava sob as cobertas numa cama confortável, na penumbra de um quarto aconchegante de um apartamento amplo e seguro. Com tudo isto, sentia um enorme mal-estar. Era seu corpo que não mais servia de continente para aquilo que também sentia como si mesmo. O corpo e a coisa, definitivamente, não se entendiam.
Por mais que tivesse lido e ouvido os argumentos sobre a unidade do corpo e do espírito, o que sentia agora era todo o peso da velha doutrina dualista. O que mais lhe chamava a atenção é que os filósofos e os religiosos nunca encontraram um termo que nomeasse esta suposta entidade única e indivisível. Ao fim de todos os arrazoados, o vício lingüístico se impunha: corpo e alma, corpo e espírito, corpo e psiquismo, corpo e mente.
Ali estava ele, a mais crassa expressão do velho dualismo. Alguma coisa sobrava no seu corpo. Algo espesso e frio pendia das bordas da sua matéria. Era algo invisível, impalpável, mas percebido confusamente como uma coisa fora do seu lugar. Isto ele podia perceber do ponto de vista do seu corpo. Mas se tomasse o lugar da coisa transbordante, o que sentia era uma imensa sensação de desamparo, uma necessidade enorme de contenção. Pois à medida em que pendia, ameaçava dividir-se em gotas espessas, ao mesmo tempo em que se experimentaava como angústia pela deformação e o gotejamento da memória.
Não suportava mais a dupla condição em que jazia. Como corpo, sentia-se fracassar em sua função de continente. Como espírito, alma, mente, psiquismo, seja lá que nome tenha esta coisa informe e espessa, perdia a consistência da memória e da continuidade. Foi assim que desejou morrer. Se matar. Mas não sabia por qual parte começar.


Imagem obtida em: dois-rios.blogspot.com

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