16 março 2014

Cila - o poema e o mito




William Costa

Sem desprezar a consistência poética, científica e filosófica de Heráclito, entendo que são uma única água as águas que banham este mundo em ciclos imemoriais - incontáveis idas e vindas ao Céu e à Terra. Urano e Gaia unindo, através da transparente substância, o que Cronos separou.

Os ventos e a água salgada escarificam e lavam a caveira encravada na rocha, livrando de algas e conchas a caixa craniana. Na verdade, trazem de longínquos lugares, e as escondem na tétrica figura, histórias da gênese do mundo. Encoste-se ali a orelha esquerda, e surpreender-se-á com o olvido.

Aportam, desse modo, em nossas praias, sopradas pelos zéfiros que varrem o Oceano Único, histórias do Mediterrâneo - braço atlântico estendido a Oriente. Felizmente, Éolo gosta de histórias, e não de segredos. Por isto, domou os ventos, transformando-os em mensageiros, para a salvação dos mitos.

Ninguém caminha impunemente entre o Atlântico e as Falésias do Cabo Branco. A memória do tempo sobrevive nesta assombrosa paisagem. Portanto um simples tronco seco de madeira, preso nas pedras, pode dar corpo e alma ao mito, que não se entrega e permanece em luta contra o esquecimento.

O poeta vê coisas para as quais os mortais comuns estão cegos. Todos passaram por Cila, mas não a viram, embora reverberasse nas encostas o silêncio – o mais eloquente dos gritos. Sem nada pronunciar, a bela ninfa, que a enciumada Circe transformou em monstro, inundou o bardo de palavras, montando o poema.

Cila era tronco por fora e um rio por dentro. Deste fio d’água subterrâneo, pelo qual escorrem o tempo e a memória, depende a sua sobrevivência. É preciso mais que olhos de lince para transfixar o objeto e contemplar-lhe o âmago. Faz-se necessário possuir os raios X da poesia, para enxergar o que a casca oculta.

A trágica cilada, que já fora cantada pelos célebres aedos de Grécia e Itália, retorna, renovada, nos versos surpreendentes do poeta de Alagoas. Somos todos odisseus. Carecemos de ouvir histórias, ou as versões da mesma história, para suportar melhor a dura jornada, que todos sabemos aonde vai terminar.

Ouçam o canto moderno do poeta alagoano. Que pujante lamento pela condição humana do mito. Que gesto amoroso, este de solidarizar-se com um ser que, num ato suicida para além da imaginação, se desgarra da narrativa e tenta chegar viva à praia ocidental, para, inútil, reivindicar o fim de sua agonia.

Profético, o poeta, dando voz ao Atlântico, anuncia, pela via do esquecimento (talvez a maior dentre todas as traições humanas), o ansiado descanso para a ninfa que Glauco tanto ama. Seca a memória dos homens, é verdade, poeta! Mas livros como Cila reterão a gota, reiniciando o ciclo, perpetuando o mito.





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