06 janeiro 2015

08 - Almeidinha - o herói de paletó

 Um folhetim burocrático                

08 - O pecado de Almeidinha


                   Não sei se falei que hoje acordei mais cedo do que de costume. Tive uma noite mal dormida. Mas não foi por ter dormido no sofá, não, que já estou acostumado. Rara mesmo é a noite em que minha senhora me deixa dormir na cama com ela. Sei que dormi mal porque amanheci de bruços e o paletó com que adormeci agarrado tinha caído no chão. E sei também que alguma coisa aconteceu para que me acordasse com a clara impressão de que tinha cometido algum pecado. Não me lembrava de nada com que tivesse sonhado, mas o gosto do pecado me deixava uma saliva pesada na boca que eu sei que só passa depois que me confessar.
                   Foi por isso que saí de casa sem tomar café, a rua ainda sonolenta, e fui direto para a igreja, esperar que Padre Guido chegasse para a missa das seis. Ele haveria de ter um tempinho para me ouvir em confissão.
                   Acho que cochilei sentado nos degraus da igreja, pois não me dei conta da chegada de Padre Guido. Abri os olhos com ele perguntando, surpreso, o que o meu amigo Almeida está fazendo por aqui a estas horas? Não acredito que dormiu na rua... O senhor está com cara de quem andou fazendo alguma trela, acrescentou meio bonachão.
                   Pronto, o pecado estava estampado na minha cara, embora eu não tivesse a mínima idéia de qual pecado se tratava. A saliva grossa secou na minha boca e comecei a tremer. Você está doente, Seu Almeida? Venha, entre e se sente naquele banco que eu vou buscar um copo d’água para o senhor.
                   Quando Padre Guido voltou com a água me encontrou de joelhos no genuflexório, a cabeça entre as mãos, pronto a desatar em soluços. Tome sua água, seu Almeida e, pelo amor de Deus, me conte o que aconteceu. O senhor matou alguém?
                   - Deus me livre, padre Guido, mas se eu soubesse qual é o meu pecado, mesmo que fosse de morte, talvez minha agonia fosse menor. O problema é justamente esse: eu sei que pequei, mas não sei qual é o meu pecado.
                   - Ora, seu Almeida, uma pessoa só pode pecar pelos seus pensamentos, palavras ou obras. Se o senhor não se lembra de nenhum pensamento mau, se não falou nenhuma blasfêmia ou injúria e se não fez nada de errado aos olhos de Deus, então não há como o senhor ter pecado.
                   - Eu não sei o que aconteceu comigo durante a noite, só sei que dormi abraçado com o meu paletó e que ele ainda guardava lá longe o perfume de uma mulher.
                   - Ah, quer dizer que o senhor andou se agarrando com uma mulher...
                   - Que é isso, Padre Guido? O senhor me conhece muito bem para saber que eu nunca faltaria ao respeito à minha senhora.
                   - Mas então, como esse tal cheiro de mulher foi parar no seu paletó?
                   - Era uma colega novata lá da repartição que esfregava a barriga em minhas costas toda vez que passava para se sentar no birô dela.
                   - E o senhor gostava, seu Almeida?
                   - Acho que não. Eu ficava muito nervoso. Minha agonia era enquanto esperava ela passar. O senhor acha que isso é pecado?
                   - Até aqui não encontrei nenhum pensamento, palavra ou obra que mereça perdão ou penitência. Vá para casa, amigo Almeida. E quando se lembrar de algum sonho que teve esta noite, volte para conversar comigo.

                   Saí da igreja um pouco aliviado, mas não fui pra casa. Decidi ir a pé até a repartição. Não sei bem porque, mas queria que aquele cheiro demorasse a sair do meu paletó. Que ficasse ali até a noite, para eu dormir novamente no sofá e conseguir sonhar com alguma coisa que mereça ser chamada de pecado. 

Nenhum comentário: