11 janeiro 2015

09 - Almeidinha - o herói de paletó

 Um folhetim burocrático

09 - Crime? Castigo?

 
                   Tudo o que fiz na repartição deu errado depois da minha conversa com Padre Guido. Eu só pensava em chegar em casa, tomar meu banho, comer apressado o prato feito que  sempre me espera no forno, tomar o resto de café da garrafa térmica, me certificar que a porta do quarto está trancada e me jogar no sofá abraçado ao paletó. Claro que demorei a dormir, pois me atormentava com o pecado que me visitaria em sonho e me faria sair correndo de madrugada em busca de absolvição.
                   Não sei como foi minha noite, nem lembro do que sonhei. O pavor tomou conta de mim quando acordei e não encontrei meu paletó. Olhei em baixo do sofá, esfreguei os olhos para olhar melhor em volta da sala e nada. Corri para o banheiro, podia ter esquecido lá. Também nada. Quase instintivamente, atravessei a cozinha e parei estatelado no vão da área de serviço. Meu paletó estava lá, pendurado no varal, ainda pingando no chão.
Não precisava procurar pela casa. Já sabia que minha esposa tinha saído logo depois de ter lavado me paletó. Não me importava para onde ela tinha ido. Tudo que me afligia no momento era não poder ir trabalhar naquele dia. O outro paletó que eu tinha não combinava com nenhuma das minhas calças. E se tem coisa que não tolero é um funcionário público com paletó e calças desencontrados. Acho falta de respeito com a repartição. Meus colegas trabalham em manga de camisa, mas isto estava fora de cogitação. Já disse que me sinto nu sem paletó.
                   Foi um tormento ter de sair para telefonar avisando que ia faltar ao trabalho. Tinha que ir na farmácia, pois não tenho celular e na minha casa não tem telefone fixo. E nunca ninguém naquele bairro jamais tinha me visto sem paletó. Iam logo pensar que alguma coisa muito séria havia acontecido comigo. Não sei como uma idéia salvadora pode me ocorrer numa agonia daquela. Lembrei que minha senhora tinha um casaco de lã azul marinho que ficava um pouco folgado nela. Ficou meio apertado em mim, mas me deu uma sensação de conforto e proteção de que tanto precisava naquela hora.
                   Quem atendeu foi Dona Marli, a secretária. O que aconteceu, Seu Almeidinha? O senhor nunca faltou um dia de trabalho. Nem atrasado o senhor nunca chegou. A gente já estava pensando que o senhor tinha morrido.
                   Tive um contratempo incomensurável, Dona Marli. Disse isso com a voz embargada, com um nó na garganta. Não podia adiantar mais nada sobre tal contratempo. Nem podia inventar uma mentira. Vocês sabem que sou católico, não minto. Dona Marli deve ter entendido meu embaraço. Disse para que eu ficasse tranqüilo que ela ia avisar ao Dr. Pacheco.
                   Eu já ia desligar o telefone quando ela acrescentou: foi realmente muito ruim o senhor ter faltado, Seu Almeidinha. Teve uma pessoa que passou aqui bem cedinho e perguntou pelo senhor. Quem pode ter sido, Dona Marli. Teria sido minha senhora? Muito pelo contrário, Seu Almeidinha. Foi a sua namorada, Dona Mosca. Quer dizer, Dona Jackeline. Fazia pena ver o desapontamento dela quando encontrou o seu lugar vazio.

                   Deixei cair o telefone no gancho e saí sem agradecer ao pessoal da farmácia. Fui me arrastando em direção à igreja. Só Padre Guido poderia dizer o que estava acontecendo comigo.

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