01 fevereiro 2015

12 – UM CHEIRO ANTIGO


Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático


      Deixemos o nosso herói caminhar heroicamente para mais um dia de trabalho que, ele sabe, não será dos mais tranqüilos. Vamos voltar dois dias em nossa história para acompanhar os passos da senhora do Almeidinha. Antes, porém, precisamos saber que ela se chama Sandra e, ao contrário do que possa parecer, se ocupa com outras coisas além de transformar a vida do Almeidinha num inferno.

           Sandra tinha passado o dia trabalhando muito. Mesmo que só tenha se levantado da cama depois de ter certeza de que Almeidinha já havia saído para o trabalho, ela fez o almoço, guardou um prato no forno com o jantar do marido e saiu para visitar suas clientes de bijuterias. Passou na casa da mãe para falar um pouco mal do marido, mas não ficou para almoçar. Comeu em casa e se deitou um pouco para uma soneca. Depois de assistir a sessão da tarde, saiu da cama e arranjou um pouco de coragem para varrer a casa. Estava justamente passando a vassoura na sala quando a porta se abriu, Almeidinha entrou e um cheiro estranho entrou com ele. Vamos deixar que a própria Sandra conte o que aconteceu naquele princípio de noite.
          Que cheiro é esse, perguntei, já com o cabo da vassoura pronto para acertar a cabeça do meu marido. Ele se fez de desentendido e me disse que não sabia de que cheiro eu estava falando, que não tinha pegado nem se encostado em nada que cheirasse mal.
          Não se faça de besta, berrei, já com o cabo da vassoura amassando o nariz dele. Isto é cheiro de mulher. Me interessa muito saber que tipo de mulher é capaz de se esfregar em um traste como você.
           Enquanto ele ficava com aquela cara de bobo procurando uma resposta para me dar, o cheiro que vinha do seu paletó me levou para muito longe, para um tempo antigo, tempo em que estudava no grupo escolar. Agora o cheiro vinha de uma colega que sentava em minha frente. Todo dia, depois do recreio, ela entrava afogueada e inundava a sala com aquela quase-catinga agridoce que tirava toda a minha concentração nas coisas sem graça que a professora falava.
       Afastei com raiva aquela lembrança e, com mais raiva ainda, berrei: Almeida, eu estou falando com você. De quem é esse perfume. Sabia que a sua fé católica não o deixaria mentir. Logo logo eu ia saber o nome da dona daquele cheiro. É de Dona Jackeline, ele respondeu. Uma colega nova da repartição. E a partir daquele instante uma idéia fixa implantou-se em minha cabeça. Encontrar essa tal Jackeline e sentir novamente aquele cheiro que carregava escondido em minha memória.
            Esperei que meu marido entrasse no banheiro e corri para o quarto. De lá mesmo joguei o lençol de solteiro em cima do sofá da sala e tranquei a porta. Mesmo com a luz apagada, passei a noite em claro, ouvindo o Almeidinha se virar no sofá, resmungando umas coisas que não consegui entender.
        Esperei Almeida sair de casa para passar um café forte e tentar me recuperar da noite em claro. Passei um bom tempo mexendo o café, entretida com o barulhinho da colher no fundo da xícara, uma perna dobrada com o pé forçando o assento da cadeira, tentando me livrar da lembrança do cheiro que meu marido tinha trazido para dentro de casa.
             Pensei em voltar para a cama, mas alguma coisa me levou para a rua. Não visitei nenhuma cliente, nem fui para a casa da minha mãe. Saí zanzando pelas ruas do bairro e fui me distanciando em direção ao centro da cidade. Não sabia muito bem para onde ia. Sabia porém que meus passos me impeliam para algum lugar em que um cheiro antigo me esperava. Era ao encontro desse cheiro que caminhava.

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