08 fevereiro 2015

13 – A ILHA DE LESBOS

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático 




                   Eu sou uma mulher casada. Não fica bem para mim perambular pelas ruas assim, sem rumo. Todo mundo sabe quem eu sou. Tenho um nome, claro, sou Sandra, mas por aqui todo mundo me conhece como a mulher do Almeidinha. Do pobre do Almeidinha, como é mais comum o povo dizer. Já é fim de tarde, preciso voltar para casa, mas alguma coisa me prende aqui nesta calçada. Mais do que isso, tenho um forte pressentimento de que vai acontecer alguma coisa que pode mudar a minha vida. E essa coisa se aproxima de mim. É o cheiro, o cheiro que vim buscar que se aproxima. Ele passa por mim e quase me derruba. Mesmo tonta, volto a cabeça e vejo pelas costas um mulher loura, de blusa de oncinha e uma saia muito curta. Seu sapato de salto agulha marca seus passos com um som insolente e ritmado.
                   Não me contenho. Persigo a mulher pelas calçadas, apressada para não perdê-la de vista. De repente, ela some, desaparece, mas eu consigo ouvir seus passos no alto de uma escada de madeira. Tem um homem sentado num caixote ao pé da escada, como se fosse uma espécie de vigia ou porteiro. Pergunto para onde pode ter ido aquela mulher. Para a Ilha de Lesbos, responde o homem. É uma boate só para mulheres. Se quiser subir, fique à vontade. 
                   Subo a escada lentamente. Meu coração disparado às vezes me manda recuar. Mas o cheiro que impera na escada me arrasta para cima. Paro mais uma vez no topo da escada. Encontro uma porta aberta, com uma cortina de conchas do mar enfiadas em fios de barbante. Sei que passando por aquela cortina estarei passando para o outro lado deste meu mundinho previsível. Estarei deixando deste lado minha mãe, minhas amigas de praia, minhas clientes de bijuterias e, mais do que tudo, esse Almeidinha que me atormenta a vida, esse traste que me estraga os dias, essa coisa ruim que me causa náuseas.
                   Mergulho na sala escura sabendo que um mundo velho se fechava atrás de mim junto com os fios de conchas. Aos poucos, foi-se revelando nas sombras as mesas mal iluminadas por pequenos abajures vermelhos. Ao fundo, um pequeno balcão onde um barman preparava drinques com trejeitos afetados. Sentada desleixadamente em um banco alto, de costas para a prateleira, os cotovelos apoiados no balcão, um copo longo com um líquido vermelho e uma rodela de limão encaixada na borda, a dona do cheiro deixava a clara impressão de que esperava por mim.
                   Não me perguntem como, mas de repente me vi sentada no banco ao lado da mulher. Ela me olhou no fundo dos olhos e disse que sabia quem eu era. Eu era a mulher do Almeidinha. Queria muito conhecer você. Queria muito saber quem era a mulher capaz de escolher um tipo daquele para marido. Foi por isso que me esfreguei no paletó do Almeidinha deixando lá o meu cheiro. Era um recado que mandava para a mulher daquele arremedo de homem. Sabia que o meu cheiro no paletó iria causar ciúme na mulher dele. Mais cedo ou mais tarde essa mulher viria me procurar.        
                   Estou eu, portanto, na frente daquela mulher, com sua voz entrando em meus ouvidos, sua roupa bizarra entrando por meus olhos e o seu cheiro me invadindo as narinas, se alojando em meus pulmões, se confundindo com o meu sangue, misturando-se com minha carne. Sabia que para sempre carregaria aquela mulher dentro de mim.

                   Antes que ela voltasse a abrir a boca, virei as costas e disparei varando a cortina, tropeçando nos degraus em direção à porta da rua. Apressada, quase correndo, tomo o caminho de casa. Preciso chegar em casa para ver se a raiva que a presença de Almeidinha me causa faz desaparecer aquele sentimento confuso que carrego entranhado em mim com aquele cheiro. Abro a porta e encontro o traste se revirando no sofá, agarrado ao paletó com a sofreguidão de um amante. O amante que ele nunca foi para mim. Arranquei com força o paletó dos seus braços, ele resmungou e se virou para o outro lado. Mergulhei o paletó no tanque da área de serviço, esfreguei com sabão até não sentir mais os braços e o pendurei no varal, onde ficou pingando, como se chorasse. Eu também tive vontade de chorar. Tinha expulsado de vez aquele cheiro devastador de dentro da minha casa.  

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