01 março 2015

14 - DE VOLTA À ILHA


    Almeidinha - o herói de paletó

            Um folhetim burocrático



                   O cheiro estava expulso da casa, mas teimava em recender dentro de mim. Ainda era cedo, não adiantava ir para a cama. Qualquer lugar fora do quarto estava impregnado com a presença daquele Almeida que não se aquietava no sofá. A porta da rua me prometia uma saída. Além dela, havia toda uma cidade tomada pelo cheiro que me teimava na lembrança. E eu sabia exatamente o lugar da cidade onde encontrar a sua fonte. Passei pelo Almeida como uma ladra, abri a porta como uma mágica, me lancei na rua como um animal. Chamei um taxi.
                   Desta vez subi a escada sem hesitação. Varei a cortina de conchas com a determinação de uma freguesa antiga. Olhei para o balcão, mas Jackeline não estava lá. Quando a vista se acostumou à penumbra, vi que ela estava em uma mesa de canto, com uma das mãos pousada na mão de outra mulher mais nova que ela. Antes que ela me notasse, ali mesmo da porta passeei os olhos por toda a sala. Pelo que minha mãe falava e minhas amigas comentavam, mulher que gosta de mulher tem jeito de homem. Mas ali, na Ilha de Lesbos, nenhuma daquelas mulheres merecia ser chamada de sapatão. Umas mais bonitas, outras mais feiinhas, umas mais atrevidas, outras mais recatadas, todas elas guardavam um ar de feminilidade, demonstravam um companheirismo, uma espécie de carinho coletivo que eu nunca tinha visto em nenhum outro lugar.
                   Meu olhar ainda vagava pela sala quando ouvi a voz de Jackeline quase dentro do meu ouvido: eu sabia que você ia voltar. Uma espécie de raio percorreu meu corpo, uma onda de gelo eriçou todos os meus pelos, o perfume ansiado se entranhou por todos os meus poros.
                   Jackeline me levou pela mão para a mesa onde a moça ainda estava sentada. Nos apresentou, disse para a outra que eu era uma amiga de infância que estava de passagem pela cidade. Queria que eu ficasse na mesa delas naquela noite.
                   A moça apertou minha mão com um certo desdém e se negou ao beijo convencional de cumprimento. Pediu licença e se retirou meio apressada. Parece que era isto mesmo que Jackeline esperava que ela fizesse.
                   Lá estava eu, sentada naquela mesinha fracamente iluminada, tendo ao meu lado uma mulher de quem eu não sabia mais do que o nome. Ao meu lado e já com uma mão sobre a minha, perguntou se eu não bebia alguma coisa. Um Martine branco doce, respondi e me lembrei dos domingos na casa da minha mãe. Me dei conta de que nunca tinha bebido com outra pessoa além de minha mãe. O traste do Almeida mal bebia água. E minhas amigas bebiam muito, de um jeito que me desagradava. Agora uma outra mulher me oferece um drinque. E de Martine em Martine fui ficando lânguida, esmorecida, adormecida e não sei como fui acordar numa cama do quarto de um apartamento minúsculo, no mesmo condomínio de minha mãe.
                   Suei frio, gelei e tomei um susto quando a porta do quarto se abriu e por ela entrou uma outra Jackeline, com um robe de seda cinza, os cabelos presos num coque e uma bandeja nas mãos: o café da manhã para uma mulher maravilhosa que não me deixou dormir nem um pouquinho esta madrugada. Disse isto enquanto arriava a badeja em minha frente, aproveitando meu estado de choque para me dar um beijo na boca.  

                   Entrei em pânico, apanhei minhas roupas e saí correndo direto para o banheiro. Me vesti apressada e me arranquei dali afastando a outra que tentava evitar que eu abrisse a porta da sala. Desembalei pela escada e apressei o passo sem dar ouvidos aos gritos que vinham da janela de Jackeline. Já era manhã alta. Minha mãe devia estar em casa.

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