08 março 2015

15 – A porta fechada

Almeidinha - o herói de paletó

Um folhetim burocrático



                   Você está fazendo tempestade em copo d’água, Sandrinha. Afinal, foi você mesmo quem provocou tudo isto. Nada disso me assusta. Acho até que a companhia das mulheres dá muito mais alegria do que a dos homens. Eu mesma não troco por nada nesta vida o jogo de biriba com minhas amigas e as suas visitas nos domingos de chuva. O que estraga é que você vem acompanhada daquele traste. Veja só: basta a companhia de um meio homem como aquele para estragar a nossa felicidade de mulheres.
                   Eu sabia que podia contar com a compreensão de minha mãe, mas nem desconfiava que ela fosse me entender tanto. Quando cheguei na casa dela, estava chorando, assustada, aos soluços. Mas à medida em que fui contando o que tinha se passado, ela fazia uma cara meio decepcionada: há, então foi isso. Pensei que fosse coisa mais séria.
                   No fim, ficamos as duas na cama, ela cuidando de mim, trazendo uma taça de Martini, umas azeitonas verdes, umas salsichas, até que tudo se reduziu a uns soluços esparsos e uma fungada de vez em quando. E foi nesse conforto materno que me entreguei ao sono. Dormi muito, dormi profundo, desse jeito que se dorme apenas na cama da mãe.
                   Acordei meio desorientada e levei algum tempo para colocar a cabeça em ordem. Primeiro, o corpo informa que eu tinha chorado. O copo vazio avisa que eu tinha bebido. As cores da cortina fechada e o cheiro de lavanda confirmam que aquele era o quarto de minha mãe. Só aos poucos a memória foi recuando e os fatos foram se encaixando. Ainda não tinha completado todo o quadro quando a minha mãe irrompe no quarto com uma bandeja nas mãos, falando quase infantilmente: um lanchinho para a filha mais maravilhosa do mundo que se espalhou na cama e não deixou a mamãe dormir. Senti uma angústia enorme e uma vontade louca de sair correndo dali.
                   Que horas são, meu Deus, quase dez horas e eu fora de casa. Preciso ir, abrir aquela porta e sentir toda a raiva que sempre me dá quando estou perto daquele homem. Preciso dessa raiva para não lembrar do que aconteceu comigo neste dia. Preciso entrar nesta sala e ver que o sofá já está guarnecido com o lençol de solteiro. Como um bicho bem treinado, ele sabe que é ali que vai dormir mais uma vez. 
                   No banheiro, ele deve estar no banheiro vestindo aquele pijama que o deixa mais ainda parecido com um palhaço. Mas a luz do banheiro está apagada, a porta semi-aberta. A cozinha e a área de serviço também estão escuras. No quarto, ele deve estar no quarto se preparando para dormir no sofá.
                   Meti a mão na maçaneta, mas a porta do quarto não abriu. Estava fechada por dentro. A luz do quarto também estava apagada. E eu reconhecia aquele ressonar de asmático por trás da porta. O pânico começou a tomar conta de mim. Fora do meu quarto, da minha toca, da minha fortaleza eu me sentia indefesa, presa fácil de todas as feras que o medo me traria de dentro da noite.
                   Almeida, abra esta porta, Almeida. Abra logo, senão eu boto ela abaixo. Você não está doido de me deixar aqui do lado de fora. Abra e vá dormir no sofá, que sempre foi o seu lugar. Abra esta porta, Almeida. Por favor. Você sabe que eu não sei dormir fora da minha cama. Pelo amor de Deus, Almeida. Você sabe que eu tenho medo de dormir fora do quarto. Na sala não, Almeidinha. Sozinha na sala, não. Eu vou passar a noite sem dormir.

                   Não sei o que pode ter dado neste homem. Onde ele foi arranjar coragem para me desafiar assim. Pela primeira vez ele se comporta com firmeza, a firmeza que eu tanto esperei que ele tivesse com as coisas da casa e da repartição. De um homem assim eu era capaz de gostar. Mas agora não posso mais. Agora meu coração se deslocou, virou de cabeça pra baixo e eu não vou mais desobedecer ao meu coração. Vou dormir no sofá, sim. Mas não vou dormir só. Apanho o paletó ainda úmido no varal e fico fuçando as suas dobras em busca de algum vestígio do cheiro de Jackeline. Mas a única coisa que encontro é o cheiro forte de sabão e, aqui e ali, uma pitada da inhaca do Almeidinha.

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